Dedico este conto
para Yasmin Fragomeni
e obrigado por tudo.
Sid, não sei se vai gostar,
mas vai para você também.
1
É possível estar em dois lugares ao mesmo tempo?
Ana
Rita tinha apenas quatro anos quando sua mãe perdera o movimento das pernas
depois do “acidente na escada” na ausência de seu pai. Na ausência de
consciência de seu pai, aquele filho de uma puta. Na verdade, ele sabia
exatamente o que fazia, mas precisava de um impulso para dar-lhe a desculpa do
motivo. A porta perdera o pino da dobradiça inferior, porque estava
enferrujada, Rita (hoje em dia ela é somente chamada assim) mexia na aba do
vestidinho encardido de sua boneca Yasmin até dormir sentada no chão da
cozinha, com os olhinhos irritados, por causa do cheiro forte de alho sendo
refogado para a janta. Yasmin presenciara tudo em silêncio, mas ficou estática
jazida no chão olhando o teto vazio, com seus olhinhos azuis de plástico, o
esquerdo um pouco mais gasto, entreaberto.
Hoje em dia não se tem conta de
quantas pessoas como Rita Astley existam, talvez porque a população em geral
nem saiba como é alguém como ela, mas Rita sabe que existem outros indivíduos,
porque sonhou com eles (alguns deles), entretanto, todas essas pessoas
“ilusio-criativas”, como eles se auto-denominam, tem um tempo muito relativo de
vida, então não se pode ter certeza de quantos nascem ou morrem com o dom (dom
ou carma?) desenvolvido. Verdadeiramente caótico, caótico, literalmente como um sonho. Não há
como acrescentar, não há como diminuir a vida, a não ser que... Ela não
conseguia se lembrar da resposta. O cérebro tem grande facilidade de excluir
informações as quais os sonhos nos dão, simplesmente descarta como dejeto de
imaginação, mas ela precisava recuperar a resposta.
Yasmin era uma bonequinha que
cantava várias musicas diferentes e isso ainda funcionava (e também o brilho
com os leds azuis que se acendiam quando se apertava o botão), porque o vovô
consertara com aquele ferro que não pode mexer e dera mais de trinta pilhas
daquelas redondinhas para ela poder trocar sempre. A voz passara a ser
assustadora, ficara grave, falha, como se houvesse alguém a chacoalhando, com interferências,
depois que Ana Rita insistira em levá-la para o banho e isso causou mal contato
nos fios, os leds queimaram, mas às vezes faziam contato e tocavam no meio da
noite: Aquele silêncio que até conseguimos ouvir nossos órgãos internos, e no
cantinho do quarto no breu imaculado, ao lado da cômoda, Yasmin saíra de sua
naninha (como naquele dia em que ela perdeu, perdeu, PERDEU, o movimento das pernas) piscando os olhos,
grunhindo como um porco, tossindo, emitindo frases desconexas e palavras jamais
escutadas “Tr-ilei matsvcrosh evarr pujstcri”. Papai avisara que se
desobedecesse, o Homem do céu a castigaria. Rita tentara responder, mas as
palavras ficaram entaladas em garganta como se houvesse engolido pedras, na
verdade, como que se fosse vomitá-las, ela chorava e ia dormir com sua mãe.
Apesar disso, Rita amava Yasmin, porque Yasmin só estava doente, com água nos
pulmões, vovô disse rindo.
A cozinha encontrava-se sozinha,
apenas o chiado da panela de pressão e o vapor que saía pela frestinha que a
mãe de Ana Rita deixara na panela do macarrão faziam presença, dançava
fantasmagoricamente pelo recinto
preenchendo a casa toda, aquele vapor com um cheiro bom de alho refogado. A
panela de pressão estava segura, não iria explodir, porque estava em fogo baixo
e dava tempo de acabar de dar banho em Ana Rita, Aninha para essas
ocasiões. Seus cachinhos estava ainda
úmidos, mas estava limpinha, sua mãe a carregava no colo, com a toalha úmida no
braço esquerdo, e Aninha carregava Yasmin imitando sua mãe. Yasmin cantava um
musica que dizia que era hora de escorregar, mas não era hora, porque já estava
anoitecendo e à noite tem bichos do lado de fora.
- Não pode – disse Aninha depois
de ser colocada no chão da cozinha. - Tem que esperar a janta e ir dormir, não
é mãe?
- É mesmo! – respondera ela,
estendendo a toalha no encosto de uma cadeira ao lado do fogão.
- Tá cheirando gostoso mãe, ta dando até
coisinha nos olhos. Minha professora disse que cebola faz a gente chorar, é
verdade? Eu quero ser cozinheira quando eu crescer, mas não quero chorar,
porque quero fazer comida feliz igual a você, sabia, mãe? Cantando igual você
faz sem abrir a boca. Por que a Yasmin não abre a boca para cantar, mãe?
- Aham – respondera sua mãe sem
dar atenção.
Depois, Ana Rita voltara a
atenção para Yasmin, que estava em seu colo. Apertava às vezes o botão para
ouvir a música e se não gostava, apertava de novo para trocar. O cheiro de alho
expelido pelos chiados ritmados pelo pino de escape da panela de pressão
causava irritação nos olhos de Ana Rita, mas mesmo assim, ela preferia ficar
ali na cozinha do que sozinha no seu quarto. Principalmente durante à noite,
porque não havia luz do lado de fora, os Astley moravam longe da cidade.
- Vai demorar muito pro papai
chegar?
- Daqui a pouco ele já chega aí
– respondera sua mãe interrompendo alguma musica que estivesse murmurando.
Depois voltara a ela.
Não deu muito tempo, Ana Rita
começara a bocejar porque ficava sempre com sono depois do banho -
principalmente a essa hora da noite, mas raramente dormia antes de seu pai
chegar -, e a fechar os olhos por causa do cheiro de alho que adentrava suas
narinas.
(quero fazer comida feliz igual
a você, sabia, mãe? Cantando igual você faz sem abrir a boca.)
Sua respiração ficara mais calma
e de repente, piscou os olhos e se viu diante da parede, justo onde sua mãe
estava, mas acordara do cochilo ao que a cabeça despencou sobre o próprio
peito. Yasmin estava displicente a sua frente, Aninha puxava a saínha de seu
vestido encardido e sujo de tão velho, estava pescando de sono, pensou em
apertar o peito da boneca novamente, mas antes que pudesse fazê-lo, dormira. E
entrara no seu primeiro estado de ilusio-criatividade.
Subitamente, era sua mãe e
vestia-se do mesmo jeito que a mãe fora do sonho. Nada era diferente na
verdade, tirando o fato de que o pino da panela não se mexia e que o vapor
flutuava preguiçosamente da panela de maneira padrão, muito estranha, mas no
sonho não reparara nisso, eram apenas imagens do cenário. Zanzava um pouco para
lá e para cá e quase queimara a mão na panela, se não fosse a guinada do carro
de seu marido (pai) do lado de fora, com um tranco perceptivelmente inesperado.
Ela foi até a pia e lavou as mãos com detergente, secou-as com uma toalha do
lado da torneira e foi andando em direção a porta, papai chegara e Aninha
sentiu algo um pouco forte para sua idade, uma sensação de amor não familiar,
mas apaixonante mesmo. Era assim que mamãe sentia-se diante de papai, ela amava
ele. Ouviu-se a porta do carro abrir do lado de fora, o carro de papai era bem
velho e cheirava mofo, mamãe disse que custou mil dólares, e aninha disse que
isso era um dinherão. Houve alguns palavreados altos e bruscos, um pouco
arrastados. A porta do carro fechou com força exagerada e Ana Rita (sua mãe)
sentia seu coração acelerar um pouco.
- Nojenta! – gritara papai do
lado de fora. – Nojenta.
Ela fora se aproximando da
porta, ouviu claramente um tilintar pesado e forte, e antes que sua mão já um
pouco trêmula pudesse abrir a porta, ela fora escancarada como que se arrombada
por corpo, pelo corpo cambaleante de papai. Ouviu-se a dobradiça enferrujada
quebrar e seu pino tocar o chão com um estalido seco. Ela olhara para trás, mas
o barulho não despertara sua filha, ela dormia com a bonequinha no colo. Mas
ela era sua mãe, também. TAMBÉM.
Um cheiro de álcool puro saia do
corpo dele, impregnando o ar mais que o alho, ele tinha pressão alta e estava
vermelho e suava, algumas gotículas brotavam de suas têmporas, era bem maior
que sua mãe. Mas naquela perspectiva, seu pai parecia bem menor do que estava
acostumada a ver, porque agora ela via com os olhos de sua mãe. Ela tentou
buscar a porta, mas ela estava caída, forçando as outras dobradiças. O pai de
Ana Rita tocou sua mão direita de forma violenta, mas ela desvencilhara-se e
recuara para mais próximo do fogão, buscando a panela com água quente para
atacar nele. Aninha não tinha consciência nenhuma dos movimentos.
- Não , por favor, não! – insistia na voz de sua mãe, o choro era
evidente, ela tentava se proteger com os braços nus, olhando com pavor para a
mão esquerda de papai, que carregava uma corrente grossa. – Nossa filha, por
favor, nossa filha.
- Nojenta, mulher nojenta! – era
só isso que ele falava naquela vez.
A mãe recuava mais alguns
passos, se encurralando na parede, ao lado da geladeira. Na parede da esquerda,
o corpo de Aninha jazia adormecido, em coma, Yasmin tinha os olhos abertos, ela
presenciava tudo.
- Sua vadia nojentinha.
- Não!
- FILHA DA PUTA!
- PARA! – gritara ela com sua
voz aguda e amendrontada.
Um movimento rápido, o cheiro de
álcool, suor, ferro e alho misturados no ambiente. A corrente correu silvando
no ar pesadamente na mão esquerda de papai. De repente, era como se fosse duas.
Havia a própria visão de volta, ela sentada, com o rosto cheio de lágrimas
(cebola faz a gente chorar, é verdade?), Yasmin contemplando o teto vazio,
nenhuma lágrima em seu rosto diante dela - mas com o susto, Aninha apertara o
botão e ela desatara a cantar um musica de ninar e piscar os olhos. E havia ao
mesmo tempo a visão da mãe, e súbito, essa se apagara depois de uma pancada que
papai acertara na região da nuca - pois ela virara-se instintivamente para se
proteger - e caíra no chão. Nunca mais poderia andar. Havia perdido o movimento
das pernas. Ana Rita também desacordara e esquecera tudo, exceto quando sonhara
com aquilo novamente aos treze anos ao
adormecer após escutar a musica de ninar de Yasmin.
Era uma noite de 15 de
novembro de 2008 a primeira vez que a lembrança voltara.
2
- Você está bem?... Rita? –
Havia apenas o espectro de Linda vertiginoso sentado em sua
frente, haviam outros estudantes que ela mal conhecia a sua volta, porém não
dava para perceber que eram outros estudantes, na verdade, para Rita, havia
qualquer pessoa a sua frente.
- Ela está abrindo os olhos –
escutou uma voz grave falando, mas que sequer compreendera uma fala. Parecia-se
com aquela voz engasgada de...
- Yasmin? – dissera ela com uma
voz muito fraca.
- Não! Sou eu, a Linda, Rita!
Levante-se! Você tá melhor? Ah, meu Deus.
- Como é que você sabe? –
murmurou no mesmo tom enfraquecido, depois esboçara um sorriso e uma risadinha.
- O que é que ta acontecendo com
ela? – falou Linda olhando para trás, depois voltou-se para o rosto da amiga. -
Rita? Não desmaie está bem? Foram chamar a enfermaria. Você tem sempre isso?
Um garoto do quinto semestre de
Química, a qual ela conhecia por John, mas sabia que esse não era seu nome de
verdade, era algo a ver com Petter, ou seria ao contrario?, sentou-se ao seu
lado.
-Hei, hei – disse ele estalando
os dedos diante dos olhos de Rita, que percorriam todos os lados, não de
maneira convulsa, mas como se o fizesse conscientemente.
- Alex! – disse ela abrindo um
sorriso, mas sem olhá-lo de fato. Era esse seu nome, mas havia algo mais. –
Você tem que beijá-la logo. É a terceira vez que tenta e nunca muda. Você vai
ver, você consegue, ela é só um pouco lerdinha – terminou e deu outro sorriso,
seus olhos dançavam.
- O que há com ela? – perguntou
Alex.
- Não sei, a gente estava
andando, aí ela apertou meu braço com força – ela mostrou o braço esquerdo,
havia um hematoma roxo, no formato de pontas de dedos – e caiu do meu lado,
dizendo coisas estranhas, mas sem sentindo, não como agora. Aí eu trouxe ela para sentar-se na parede.
- Não tem problema, Linda, seu
cachorro sempre volta depois de dois dias, você só tem quem prendê-lo antes que
persiga o... – parou de repente, abrindo suas pálpebras absurdamente, lágrimas
começaram a sair em feixes correndo seu rosto. -... não merece isso.
Lá de trás, vinham quatro
rapazes correndo vestidos de branco, carregando uma maca. Alex levantou-se e
ficou pronto a dar um auxílio se precisasse. Eles chegaram, e notaram Rita
sentada.
- Com licença, abram espaço, por
favor, com licença, moça – falou um rapaz de aparentes vinte e dois anos de um
e oitenta, abrindo espaço entre os curiosos, olhos verde claros, e com um
mínimo de cabelos, ele raspava desde que tornara-se calouro na universidade
cinco anos atrás, às vezes deixava uma barba, agora, porém, ela estava feita,
bordado na aba do bolso de seu jaleco, em verde, estava escrito Mattew, seu
nome. Ele chegara antes dos outros três, eles vinham logo em seguida, Linda
dera espaço para ele. - Ela está melhor? – perguntou ele a Linda. Agachou-se e
segurara no rosto de Rita, tentando trocar os olhares com ela em vão. – Hei,
moça, está bem? Céus, Bill, ela está ardendo em febre. Você se alimentou
direito? Moça? Consegue me ouvir?
Rita desatara a dar uma
gargalhada divertida, Matthew levantou-se para ajudar a desmontar a maca. Bill
e os outros auxiliaram a levantá-la, ela continuava dando uma risada gostosa.
Alex ficara estático ao seu lado com um rosto preocupado, algo mexera com ele,
depois fitou Linda e voltou-se para Rita novamente, a gargalhada correndo como
se aquilo fosse a melhor piada do mundo.
- Ela tomou alguma coisa? –
perguntou Bill para Linda num tom baixo. – Tipo... alguma droga, entorpecente
ou coisa parecida, algum remédio?
- Não, não... quero dizer, não
que eu saiba, ela não me disse nada. Ela estava o tempo todo comigo. Vimos a
aula de psicologia juntas e...
- Venha com a gente.
Os rapazes a levavam com a maca
para a enfermaria, os curiosos dispersaram-se como formigas que perdem o doce,
Alex sobrando, olhando os rapazes levarem Rita, a gargalhada correndo solta.
Rita queria fazer psicologia
desde a oitava série, porque achava que assim como ela, podia fazer os outros
se recuperarem. É claro que Ashley Smith a influenciara. Ashley cuidava de Rita
desde que aquilo acontecera em sua
casa e ficara abandonada. Ashley era muito negra, havia puxado o avô, um Sul
Africano orgulhoso e mesquinho, descontente com a vida. Ashley tinha um corpo
lindo, sempre usando saltos que a deixavam mais esbelta, usava sempre os
cabelos trançados para trás e, não esse, mas o outro penteado, o preferido de
Rita, tinha dreads caindo-lhe nos ombros, hoje em dia, eles são mais
comportados.
A vida de Rita, depois do que
aconteceu naquela noite em sua casa, mudara drasticamente, pois fora adotada
por uma família de classe média do centro, ainda na mesma cidade. Sua mãe, no
entanto, ainda permanecera viva, mas sem condições de cuidar dela, mas Rita
estava ciente de quem era sua mãe biológica, mas não entendia – nem procurava
entender – porque ela era tão distante ou porque não andava. Aparentemente, as
memórias do ocorrido, por grande sorte, haviam-se apagado, sem deixar traumas
ou seqüelas no comportamento de Rita, mas Ashley passou a acompanhá-la desde
seus cinco anos, no primeiro dia de setembro, uma semana depois de seu
aniversário, dia 24 de agosto. Ashley achou melhor não contar tudo o que
aconteceu diretamente, e fazer desenvolver-se junto com a compreensão e
maturidade, o conhecimento de Rita sobre tudo aquilo, a corrente batendo em
cheio na medula de mamãe, ela nunca mais andaria depois daquele dia.
Rita gostava de dizer que tinha
três mães, a sua, deitada na maca no Hospital a
quarenta quilômetros de casa, sua mãe adotiva e Ashley, quanto sua
consideração paterna, não considerava seu pai adotivo como tal, não tinha
notícia de seu pai legítimo, e perdera a fé em Deus (o Homem lá de cima) aos 11
anos, Ashley sempre a influenciara a crer no que achava melhor, nunca interveio
na opção de Rita.
ara.
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